Dentre todos os filmes de Alfred Hitchcock houve um que ficou conhecido pela grande dificuldade em acertar o desfecho final:Suspicion (Suspeita), de 1941. Hitchcock entrou em conflito com seus produtores, porque queria manter o roteiro fiel ao romanceBefore the Fact, de Francis IIes (pseudônimo de Anthony Berkeley Cox), onde o ator principal revelava-se no final um assassino. O problema é que este ator era Cary Grant e em todas as suas atuações anteriores havia desempenhado papéis que passavam longe de um assassino.

A busca de um final que contentasse a todos avançou durante quase toda a filmagem, algo parecido com o que acontece hoje (só que propositadamente) com as novelas, para manter o suspense do público ao esconder o desfecho da estória. De maneira diferente aqui, por pouco o filme não foi abandonado, com atores perdidos nas cenas sem saberem para onde iria o roteiro junto ao próprio desinteresse de Hitchcock. Houve então uma proposta - aceita, afinal, para transformar Cary em suspeito e não assassino de fato. É assim que Cary sobe as escadas na famosa cena em que leva um copo de leite - supostamente envenenado - para sua esposa, interpretada por Joan Fontaine.

O uso da iluminação ajudava a transmitir a atmosfera desejada ao filme: quando Joan suspeita de Cary, as sombras predominam nas imagens, quando a inocência de Cary deve ser destacada, predominam as imagens muito iluminadas. Na famosa cena citada acima, em meio às sombras da escada, chama a atenção do público o copo de leite nas mãos de Cary. Hitchcock providenciou uma pequena lâmpada no interior do copo, chamando assim a atenção dos espectadores para a questão chave naquele momento, o provável envenenamento do leite.

Este é um dos muitos recursos utilizados pelo cinema para levar a atenção do espectador para determinado lugar dentro da cena. O olho humano busca, naturalmente, o que é mais luminoso e mais nítido em uma imagem. Observar detalhes em sombras exige esforço de nossa atenção, assim como tentar decifrar uma imagem desfocada. Por natureza buscamos o conforto na maioria das horas em que lemos, digitamos ou simplesmente deixamos as imagens virem até nós, assistindo TV ou dentro de uma sala de cinema.

Em um livro existe o recurso das palavras, do qual o autor lança mão para levar o leitor para onde deseja. Em um filme, nem sempre as imagens ajudam mais do que as palavras: frequentemente é algo que acontece "dentro" dessas imagens o ponto chave da questão. Sabendo das preferências de visão do olho humano, cineastas tem utilizado ao longo do tempo recursos para mostrar o que querem, em uma cena, deixando o "alvo" ou mais nítido ou mais luminoso, ou ambos. Uma técnica fácil é o desfoque do segundo plano: o rosto do ator fica nítido e tudo atrás dele, fora de foco. É fácil imaginar alguém falando para a câmera com diversos acontecimentos interessantes desenrolando-se por detrás dessa pessoa. Se esses acontecimentos estão em foco, tanto quanto o ator, a atenção da platéia se divide e a força do roteiro perde-se.

Quando as câmeras de vídeo tornaram-se "camcorders", assemelhando-se às suas pequenas primas de película de 16mm, uma das primeiras surpresas dos cineastas que se aventuraram na nova mídia foi a dificuldade de reproduzir a técnica de desfoque de uso tão corriqueiro no cinema. Sim, era possível obter o mesmo efeito de desfoque, porém utilizando ajustes na câmera e no seu posicionamento que muitas vezes inviabilizavam a empreitada. Sabe-se por exemplo que ao utilizar o ajusteTele da lente zoom em seu grau máximo, ocorre em sua máxima amplitude o efeito de desfoque do segundo plano. O uso de grandes aberturas da íris também contribui para desfocar o fundo na imagem. No entanto, para obter o enquadramento desejado na técnica do ajusteTele descrito acima é necessário recuar muito a câmera - nem todos os lugares e nem toda dinâmica de cena permite isso. Grandes aberturas da íris contribuem de fato, mas tem a iluminação como seu contraponto.

Por quê isso tudo acontece? A resposta está na Óptica: quando uma lente forma a imagem de algum objeto ou pessoa sobre um anteparo, quanto mais convergente essas lente for, menor será a imagem produzida. O leitor pode fazer a experiência munindo-se de 2 lupas comuns de aumento: em uma situação, forme a imagem sobre um papel com uma das lupas e em outra, faça o mesmo sobrepondo as duas lupas, uma encostada na outra. Com 2 lupas, é necessário trazer as lentes para mais perto do papel. Por outro lado, com 2 lupas a imagem fica menor. Isso é o que acontece nas objetivas das câmeras: 2 lupas comportam-se da mesma forma que uma lente que "valha por duas", ou seja, mais "encorpada", isto é (traduzindo-se em linguagem óptica) tem menor distância focal - daí o motivo de necessitarem estar mais próximas do papel.

Com uma só lupa, observe a imagem formada no papel: desenhe mentalmente em retângulo que contenha boa parte dela (a imagem da lente é redonda, certo?). Se desejar, faça mesmo o desenho do contorno do retângulo. Agora, imagine um retângulo bem menor, dentro do primeiro: se você quiser ter os mesmos elementos ali (uma pessoa inteira por exemplo), terá que acrescentar a segunda lupa no conjunto: a imagem fica menor, mas "cabe" agora dentro do retângulo menor. O que você fez foi diminuir a distância focal do conjunto, o que em linguagem óptica significa passar a utilizar uma lente mais grande angular. Bingo! Qual é a característica marcante das lentes grande-angulares? Grande profundidade de campo. Agora se você pensar que os sensores utilizados nas câmeras de vídeo tem área parecida com a do seu retângulo pequeno e os fotogramas utilizados no cinema com a do seu retângulo grande, entenderá porque no vídeo, de maneira geral, os elementos na imagem estão todos em foco com muito mais frequência do que no visor da câmera de cinema ou mesmo de fotografia still.

Como então utilizar a técnica do desfoque da imagem com essas câmeras de vídeo? Existem câmeras de vídeo utilizadas nos grandes estúdios e produtoras que não possuem esta limitação, mas falamos aqui das câmeras de vídeo utilizadas no mercado semi-profissional e consumidor, com sensores tendo dimensões como 1/3 polegada por exemplo. Esta possibilidade surgiu com um recurso chamadoadaptadores de lentes 35mm.

Se o problema é o tamanho do sensor, pensou-se em captar a imagem da imagem, ou seja, a câmera de vídeo capta a imagem formada por uma lente de 35mm sobre um anteparo. Esta lente de 35mm refere-se à bitola da película 35mm, utilizada pelas câmeras de cinema e fotografia tradicionais. Embora as áreas de imagem formada nos negativos de fotografia 35mm e cinema 35mm sejam diferentes, são ainda bem maiores do que as áreas dos sensores comuns de vídeo (CCDs e CMOSs).

A estrutura do adaptador pode ser vista na ilustração: a imagem a ser capturada é a das cabines da roda gigante London Eye. À direita encontra-se a câmera de vídeo tradicional, representada por um retângulo cinza claro. No meio, tem-se o adaptador de lentes, representado por um retângulo cinza escuro. Ele é adaptado sobre a objetiva já existente na câmera, como se fosse um "extensor" a mais. No adaptador, da esquerda para a direita, o primeiro elemento que existe é a lente 35mm. Ela não faz parte diretamente do adaptador (não é comercializado com a lente), deve ser providenciada pelo usuário. Pode ser qualquer lente de 35mm, por exemplo uma retirada de câmera fotográfica reflex 35mm, desde que seu encaixe corresponda ao encaixe do adaptador (existem diversos modelos de adaptador). Esta lente vai formar a imagem sobre um vidro fosco (conhecido como vidro despolido, ou ground glass) existente no interior do adaptador. Note que a imagem está invertida, como sempre as lentes fazem normalmente. A câmera de vídeo irá "ver" esta imagem do outro lado, e para conseguir focalizá-la e enquadrá-la corretamente existe no adaptador uma lente macro (vendida conforme o modelo de câmera a ser utilizada com o adaptador).

Agora a imagem no sensor da câmera não está mais invertida (como seria o normal) e o resultado é que a imagem no visor (LCD / viewfinder) aparece invertida.

O que ganha-se com isso: a grande facilidade de obter-se desfoque de campo na imagem propiciada pela área da imagem 35mm. E ainda mais: inúmeras possibilidades de uso de lentes tanto de máquinas fotográficasstill como de cinema (respeitadas as limitações de encaixes e bitolas referidas acima). O vídeo ganha o mesmo recurso estético do cinema.

O que perde-se com isso: tudo o que se coloca na frente da objetiva é passível de escurecer a imagem (perde-se em torno de 2 a 3 pontos no diafragma) e causar perda de nitidez. Este último ponto está ligado diretamente à qualidade da lente 35mm utilizada: pode ser evitado quanto melhor for a precisão dessa lente. Quanto ao problema da inversão da imagem nos visores da cãmera, tanto LCD como viewfinder, muitos adaptadores atualmente já trazem um prisma (em alguns modelos opcional) para corrigí-la. Naturalmente trata-se de mais um elemento a escurecer e prejudicar a nitidez da imagem final, mas que pode ser contrabalançado com a maior qualidade dos outros elementos ópticos do adaptador. Essa questão envolve o custo mais alto da fabricação desses cristais transformados em lentes e prismas e está ligada diretamente ao preço final dos diferentes modelos de adaptadores.

No entanto, mesmo com os pontos negativos acima, diversos filmes, comerciais e outros trabalhos estão sendo captados atualmente em vídeo utilizando adaptadores, com resultados muito bons, quando o equipamento que se tem disponível é o que possui sensores pequenos, como os de 1/3 pol. citados. Por outro lado, nem todos os trabalhos em vídeo pedem a estética do desfoque de segundo plano obtida com facilidade com os adaptadores.

A conclusão é que toda ferramenta ou técnica tem sua aplicação e seu uso indicado para determinada situação, assim como naquele momento era indicado iluminar o copo de leite de Cary, que, afinal, apesar de todas as suspeitas não matou Joan.